Breve História das Artes Marciais Filipinas
Conteúdo originalmente publicado no livro: INTRODUÇÃO AO ARNIS MODERNO ISBN: 978-65-01-10264-1 Escrito pelo Professor Tales de Azevedo Este conteúdo é protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido sem autorização. Ao utilizar trechos deste material, favor referenciar a origem adequadamente.
Filipinas: Berço do Arnis Kali
As Filipinas, hoje conhecidas como um país com uma das maiores populações do mundo e uma rica diversidade linguística, têm uma história que remonta a tempos antigos. Este arquipélago asiático, composto por mais de 7.000 ilhas, já foi lar de diversas civilizações. Historicamente, as comunidades filipinas estavam organizadas em "barangays", pequenos assentamentos liderados por um "datu" ou chefe.
A partir do século X, começaram a surgir reinos e sultanatos, como o Reino de Namayan e o Reino de Tondo, que se destacaram no comércio. Outros reinos notáveis incluíram Butuan, Maynila, Cebu e a Confederação de Madja-as. A sociedade pré-colonial filipina era diversificada e complexa, com diferentes classes sociais, e que se destava pela sua rica produção artística, especialmente em cerâmica e tecelagem, além de uma tradição forte em metalurgia. Antes da chegada do cristianismo e do islamismo, as práticas espirituais diversas também eram encontradas na região.
Os espanhóis chegaram às Filipinas durante a histórica expedição de circum-navegação de Fernando de Magalhães, em serviço da Coroa espanhola. Magalhães desembarcou nas ilhas em março de 1521, iniciando o primeiro contato europeu significativo com a região. Apesar do sucesso inicial na conversão de alguns líderes locais ao cristianismo, incluindo o rei de Cebu, a resistência rapidamente emergiu, culminando na Batalha de Mactan, onde Magalhães foi morto por guerreiros liderados por Lapu-Lapu.
Após esse confronto, os espanhóis não estabeleceram uma presença imediata e duradoura nas ilhas. Foi apenas em 1565 que Miguel López de Legazpi liderou uma expedição mais bem-sucedida, fundando o primeiro assentamento permanente em Cebu. A partir daí, os espanhóis expandiram seu controle, estabelecendo Manila como a capital em 1571. Manila foi escolhida pela sua localização estratégica e logo se tornou um centro de comércio e administração, consolidando o domínio espanhol nas Filipinas. As ilhas foram então integradas ao Vice-Reino da Nova Espanha, com sede na Cidade do México, e passaram a ser administradas como parte do império colonial espanhol nas Américas e na Ásia.
Durante o período colonial nas Filipinas, a sociedade era estruturada em uma hierarquia rígida. No topo estavam os peninsulares, espanhóis nascidos na Espanha, que ocupavam as posições mais elevadas no governo e na Igreja. Logo abaixo vinham os insulares, ou crioulos, espanhóis nascidos nas Filipinas, que, apesar de terem alguns privilégios, enfrentavam discriminação dos peninsulares.
Seguindo na hierarquia, estavam os mestiços e a principalia. Os mestiços, descendentes de espanhóis e nativos filipinos, tinham acesso relativamente maior à educação e oportunidades econômicas, e alguns conseguiam se integrar à elite local. A principalia, composta por líderes locais e membros da elite indígena, ocupava uma posição significativa na administração local, desempenhando um papel importante na mediação entre interesses espanhóis e nativos.
A base da pirâmide social era formada pelos nativos filipinos, que trabalhavam principalmente na agricultura, pesca e outras atividades de subsistência. Muitos eram submetidos ao sistema de encomienda, pagando tributos aos encomenderos espanhóis em troca de "proteção" e instrução religiosa, e também eram obrigados a participar do polo y servicios, uma forma de trabalho forçado para obras públicas.
Além disso, os nativos filipinos também foram recrutados como soldados e marinheiros nas forças armadas espanholas. Esse recrutamento envolvia treinamento militar que incluía o uso de armas de fogo e táticas de combate europeias, além de participarem em várias funções militares, desde a infantaria até a artilharia .
A Igreja Católica Romana desempenhou um papel central na colonização das Filipinas, não só na evangelização mas também na administração colonial. Missionários franciscanos, agostinianos e jesuítas foram os principais agentes da conversão ao cristianismo e da educação dos nativos. A igreja possuía vastas propriedades e estava profundamente envolvida na economia local, controlando plantações e outras atividades produtivas. A imposição do cristianismo foi uma das ferramentas mais poderosas para consolidar o controle espanhol, ao mesmo tempo em que trouxe profundas mudanças culturais para a população nativa.
Durante o período colonial, o espanhol tornou-se a língua oficial da administração, da educação e do comércio, sendo amplamente utilizado pelas classes dominantes e na comunicação oficial. No entanto, a maioria da população filipina, composta principalmente por indios e membros da principalia, não adotou o espanhol como língua do dia a dia. Em vez disso, continuaram a usar seus idiomas nativos, como o Tagalo, Cebuano e Ilocano. O espanhol, portanto, não se popularizou como língua franca entre a população em geral, mantendo-se predominantemente entre as elites e aqueles diretamente envolvidos com o governo colonial ou a igreja.
No século XIX, as Filipinas enfrentavam uma série de tensões sociais e econômicas que culminaram em conflitos significativos. A corrupção, a exploração econômica e a discriminação eram algumas das principais queixas da população filipina. A crescente influência da Igreja Católica Romana também causou ressentimento entre os nativos, especialmente porque a igreja controlava vastas áreas de terra e era vista como aliada dos interesses coloniais. Uma das figuras mais notáveis desse período foi José Rizal, um intelectual e reformista que, através de seus escritos, como "Noli Me Tangere" e "El Filibusterismo", criticava abertamente as injustiças do regime colonial e da igreja. Seu trabalho inspirou um movimento de reforma que, no entanto, foi recebido com repressão pelas autoridades espanholas. A prisão e execução de Rizal em 1896 inflou ainda mais a população filipina contra o domínio espanhol.
No final do século XIX, a estruturação da arte marcial de origem filipina começou a ganhar forma, influenciada significativamente pelo Katipunan, uma sociedade secreta revolucionária fundada por Andrés Bonifacio em 1892. A Katipunan, inspirada por ideais nacionalistas e influências maçônicas, tinha como objetivo a independência das Filipinas por meio de uma revolta armada. Foi durante este período que a esgrima europeia, introduzida pelos espanhóis, começou a se fundir com técnicas locais de combate, resultando na evolução para o que hoje conhecemos como eskrima ou arnis - a arte marcial que combina técnicas de esgrima espanhola e naval com práticas tradicionais filipinas, criando um sistema único e adaptado às necessidades do combate local.
O Katipunan desempenhou um papel crucial na disseminação dessas práticas de combate, especialmente durante a Revolução Filipina, que eclodiu em 1896 após a descoberta da organização pelas autoridades espanholas. Liderada por figuras como Emilio Aguinaldo, que se destacou como líder militar e político, a revolução viu uma série de batalhas e revoltas em várias províncias filipinas. Apesar dos esforços dos espanhóis para suprimir a revolta, a luta pela independência continuou vigorosamente. Em 1897, após vários confrontos e negociações, Aguinaldo foi exilado em Hong Kong, onde continuou a planejar a resistência contra o domínio colonial. Durante este período, o governo espanhol enfrentou crescentes dificuldades para manter o controle sobre as Filipinas, enquanto o espírito de independência e as técnicas de combate filipinas continuavam a se desenvolver e se solidificar.
A situação mudou dramaticamente com o início da Guerra Hispano-Americana em 1898, quando os Estados Unidos, em guerra com a Espanha, viram uma oportunidade estratégica no Pacífico. Em um esforço para enfraquecer a posição espanhola, os Estados Unidos apoiaram a causa filipina, facilitando o retorno de Aguinaldo ao arquipélago. Com o apoio americano, as forças filipinas conseguiram derrotar os espanhóis em várias frentes. Em 12 de junho de 1898, Emilio Aguinaldo declarou a independência das Filipinas da Espanha e estabeleceu a Primeira República Filipina, com ele próprio como presidente. No entanto, essa declaração de independência não foi reconhecida internacionalmente, e o destino das Filipinas foi decidido em negociações entre a Espanha e os Estados Unidos através do Tratado de Paris, assinado em dezembro de 1898, que encerrou oficialmente a Guerra Hispano-Americana. Pelo tratado, a Espanha cedeu suas colônias nas Filipinas, Porto Rico e Guam aos Estados Unidos em troca de uma compensação monetária. Os Estados Unidos assumiram o controle das ilhas, marcando o início de um novo período de colonização.
Este novo domínio americano não foi aceito passivamente pelos filipinos. O resultado foi a eclosão da Guerra Filipino-Americana em 1899, um conflito sangrento que durou até 1902, com alguns focos de resistência continuando até 1913. Apesar da resistência feroz, os Estados Unidos conseguiram estabelecer controle sobre o arquipélago, transformando as Filipinas em um protetorado americano. Durante o início do controle americano nas Filipinas, houve um esforço significativo para introduzir benefícios sociais, como a YMCA (Young Men's Christian Association – ou ACM como nós conhecemos no Brasil), que não apenas promovia atividades físicas como o boxe ocidental, mas também ajudava a disseminar o "American Way of Life" e a língua inglesa. A primeira filial da YMCA em Manila, inaugurada em 1909 e liderada por C.H. Jackson, tornou-se um centro importante para a promoção do boxe entre soldados americanos, e isso logo se estendeu aos filipinos. As primeiras lutas profissionais de boxe nas Filipinas ocorreram nesse ambiente, iniciando um processo de popularização do esporte como forma de entretenimento e desenvolvimento físico.
No entanto, as autoridades coloniais viam as lutas tradicionais, com suspeita, temendo que pudessem ser usadas como uma forma de treinamento para atividades subversivas ou resistência. Isso levou à implementação do Ato Governamental Nº 557, que buscava regulamentar e controlar essas práticas, especialmente devido à preocupação com apostas e jogos de azar.
Apesar dessas restrições, o boxe continuou a crescer em popularidade, com muitas práticas clandestinas ocorrendo em áreas próximas às bases militares americanas. Em 1921, o governo americano decidiu legalizar o boxe e outros esportes de combate, na esperança de reduzir a violência das lutas clandestinas. Essa legalização permitiu que membros das classes mais baixas vissem no boxe uma chance de ascensão social. Um marco importante foi em 1925, quando Francisco "Pancho Villa" Guilledo conquistou o primeiro título mundial de peso mosca para as Filipinas, solidificando o boxe como um esporte nacional.
Durante o início do regime americano nas Filipinas, os irmãos Cañete, Florentino e Eulogio, começaram seu treinamento em Eskrima sob a tutela de vários mestres renomados, incluindo seu pai Gregorio Cañete, Gavino Cañete, Pedro Cañete e seu tio Juanso dela Cuesta. Eles também foram ensinados por figuras notáveis como Tenyente Piano Aranas, Goriong Tagalog, Juanso Tikya, Andres Suares, Tito de Goma e Cesario Aliason. Buscando expandir seu conhecimento, os Cañete mudaram-se para o distrito de San Nicolas em Cebu City, onde treinaram com os mestres mais famosos da época, Lorenzo Saavedra e seus sobrinhos Teodoro e Federico Saavedra.
Em 1920, os Cañete uniram-se aos Saavedra para fundar o Labangon Fencing Club, a primeira organização de Eskrima nas Filipinas. Este clube, que utilizava o termo "fencing" devido à influência americana, que associava a arte à esgrima europeia, foi um marco importante na promoção da Eskrima. Lorenzo Saavedra, carinhosamente chamado de "Tatang Ensong", e Teodoro "Doring" Saavedra, foram figuras chave no ensino de técnicas avançadas de Espada y Daga e combate de curta distância (corto) aos Cañete. Apesar do sucesso inicial, o Labangon Fencing Club se dissolveu em 1931 devido a conflitos políticos sobre o futuro das Filipinas como território dos EUA.
Em 11 de janeiro de 1932, Eulogio Cañete, Lorenzo Saavedra e Teodoro Saavedra, junto com outros eskrimadores renomados, fundaram o Doce Pares. O nome "Doce Pares" refere-se aos doze paladinos do imperador Carlos Magno da França, que eram conhecidos por suas habilidades excepcionais com espadas. O nome também foi dado em homenagem aos doze mestres que inicialmente formaram a organização, simbolizando a importância da união e colaboração entre os eskrimadores. Durante a eleição de oficiais, Eulogio "Yoling" Cañete foi eleito presidente e Teodoro Saavedra, vice-presidente. A associação cresceu rapidamente, incorporando mestres como Jesus Cui, Felipe Villaro, Claudio Kalinawan, Victorino Dilao, e muitos outros.
Durante a Segunda Guerra Mundial, vários membros do Doce Pares, incluindo Teodoro Saavedra, juntaram-se às Forças Armadas dos EUA no Extremo Oriente e às forças de resistência, usando suas habilidades em eskrima na luta contra a ocupação japonesa. Infelizmente, Teodoro Saavedra foi capturado e executado pelos japoneses em 1943. Após a guerra, os membros restantes do Doce Pares se reuniram para reviver a organização e promover a arte marcial filipina.
A ascensão de Ciriaco "Cacoy" Cañete como lutador e inovador mais habilidoso do Doce Pares trouxe novas técnicas e abordagens para a organização. No entanto, desentendimentos sobre o estilo de combate causaram uma divisão dentro do grupo. Venancio "Anciong" Bacon, um dos mestres originais do Doce Pares, deixou o grupo para formar o Balintawak Self Defense Club em 1952, junto com Vicente Atillo, Delfin Lopez, Jesus Cui, Timoteo Maranga, Lorenzo Gonzales, Isidro Bardilas, Andres Olaibar, e outros. Nomeado em homenagem à rua Balintawak em Cebu, onde o clube foi estabelecido, o Balintawak se destacou por sua abordagem mais agressiva e direta ao "Juego Todo", um estilo de combate sem regras que testava a eficácia das técnicas de Eskrima.
Durante o seu período principal, o Balintawak desenvolveu duas metodologias de ensino principais: o sistema original de Anciong Bacon, focado em precisão e estratégia, e o método de agrupamento de Jose Villasin, que facilitava o ensino em grupos maiores. Essas metodologias refletem a evolução contínua das artes marciais filipinas, adaptando-se às necessidades e contextos do século XX. Bacon, após ser libertado da prisão por matar um agressor em legítima defesa, continuou a supervisionar o treinamento de seus alunos para garantir a qualidade do Balintawak